terça-feira, 28 de julho de 2015

coração de passarinho

eu segurava a mão fria de vovó entre as flores postas, enquanto minha mãe foi pegar um café. nunca comi nada em cemitérios, tenho horror a lanchinhos fúnebres, não bebo nem água. nada. não me parece um bom lugar pra se fazer refeição e sabe, comida carrega energia. respirei fundo e engoli saliva, o que fez meu estômago revirar de fome e dor.

precisava sair dali. olhei uma última vez pra vó belinha, ela estava bonita apesar do algodão no nariz. eu amava suas rugas. quando criança gostava de criar caminhos pela pele já tracejada pela vida. a tia anita tinha passado até o perfume de alfazema nela. estava fofinha e cheirosa como sempre, pena a ausência de vida.

saí por uma porta de vidro lateral na qual precisei pedir licença a pessoas que nunca vi na vida, mas que deviam conhecer minha falecida avó. mirei as crianças que estavam ao redor de um banco e se comportavam com mais agitação do que a recomendada para a ocasião. me aproximei curiosa e pude ver um passarinho cinzento e muito pequeno acomodado nas mãos de gabriel. de olhos fechados e bico entreaberto, eu logo percebi que estava morto. 

larissa, a menorzinha, puxava para baixo a blusa do irmão, tentando enxergar acima de seu campo de visão. segurei a menina no colo e ela passou o dedo pela cabeça do bichinho. 

'e agora?' - perguntei

'tia, ele pode ficar com a vovó?'

'acho que sim'

voltamos para a sala onde as velas queimavam, misturando cheiro de parafina com o das flores que já murchavam. pedi que gabriel me passasse o passarinho. antes de me entregar, ele lhe deu um suave beijinho e a larissa, claro, também quis beijá-lo. acomodei-o entre as mãos de minha avó e quando fecharam o caixão, os dois ficaram juntos. 

já em casa, as crianças estavam exaustas. ajudei minha irmã com o banho deles e os colocamos pra dormir. o gabriel já sonolento me disse: 'tia, se a vovó ficar com medo, o passarinho pode cantar pra ela'. 

sorri e ele sorriu de volta com olhos tristes e meu estômago voltou a doer, porque eu estava apavorada e não havia quem pudesse cantar junto ao meu peito.