domingo, 26 de abril de 2009

ele fala baixinho, quase sussurando. e fala de coisas simples e com um ar de inocência que quase me faz pensar que é só um menino. não muito parecido comigo e meu timbre de voz estridente e meus gestos expansivos. ele chegou a pouco, ficou pouco tempo, disse pouco sobre ele, fizemos poucas coisas juntos. ele resolveu voltar. não que não estivesse gostando dessa cidade, mas precisava voltar. e logo eu, que promovo aos quatro ventos o desapego, senti um nó no peito quando ele me disse: preciso voltar. não quis me despedir com sexo. preferi a lembrança dos seus olhos pequenos, seu ar um tanto abatido e o sorriso vacilante. mesmo quando me desculpei por estar descomposta em meu pijama de moleton e as meias de dedinho ele disse que esperava me encontrar com a camisola listrada de algodão que ele acha muito sexy, ele sorriu daquele jeito inseguro.

e no dia de são jorge, em meio a tanta gente girando, um caboclo me disse: solta esse cabelo, fia, que você fica mais bonita! e ele mesmo tirou minha presilha: não esconda quem você é. meus olhos marejaram mais pela fumaça do charuto e o caboclo continuou: tem tanta gente que vem e vai na nossa vida, menina. mas quem fica guardado aqui no peito, fia, uma hora volta. quem vai é porque tem que ir. deixa ir, fia, deixa ir. eu só deixei que as lágrimas transbordassem, mas era por causa da fumaça. despedida nenhuma nesse mundo me faz chorar.

sábado, 25 de abril de 2009

nunca se olhava quando estava nua. ela sentia falta não sei do que naquele corpo. era tão, mas tão comum que mal podia se aguentar. a pele desbotada trazia memórias de dias lindos que viveu mas nem se lembrava como. quando pensava naqueles dias era como a recordação de outro a lhe invadir. custava a acreditar que foram vividos por ela, mas foram e ela sabia. só não sentia algo que se aproximasse de emoção ao recordar.

estranho. ela nem notou o quanto mudou nos últimos anos. a única mudança inaceitável se deu antes do seu nascimento. deus não lhe deu um pau e ela sofre, desde o dia em que se descobriu mulher e gente, de um permanente complexo de castração.

ela não se olhava quando estava nua. porque sempre lhe faltava algo entre as pernas. algo que lhe daria direito de decidir, como os homens a hora de começar e de parar. que lhe colocaria no controle das situações. um membro bem imponente e dominador, como ela sempre imaginou que teria, caso não lhe houvessem castrado um dia.

fitou os pés largos dos passeios descalço, sentiu a água morna escorrer junto com todo o sangue que poderia perder durante cinco dias. e lhe passou pela cabeça a certeza absoluta de não ser quem era. a carne era macia, a faca que lhe rasgava era afiada. era o sangue de todas as veias que manchavam de rubro a pele branca, as paredes brancas e tingia a água. foi bonito ver, no último momento, o mundo vermelho, os olhos vermelhos pelas gotas que respingavam. já não era frio o chão.

alguém bateu na porta. estava atrasada para o colégio. café com leite e pão com margarina. venha comer antes que esfrie.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

são essas coisas que me despertam sentimentos hostis. essa vaidade exagerada, disfarçada de despretenciosidade. eu admiro os fantasmas, que vagam sem ser notados, que emprestam suas idéias a outros e muito mais os que se escondem em outros nomes. acredito que pensamento nenhum, que após transcrito ou verbalizado seja propriedade de seu autor. ao contrário, muito mais de quem o ouve, lê e sente da forma como lhe couber. ou não. muito fácil expressar coisas que não querem dizer nada. por isso os poetas morrerão de fome. ninguém vive de poesia! no máximo o poeta será suficientemente convincente para comover e com muita sorte comer alguém!

eu não desisti das palavras, eu não me entreguei por paixão. não me troquei por uma idéia formada, não me esforço em parecer com nada. nem em ser diferente de nada. não vou expor meus conflitos. não encontro espaço pra eles sequer em mim. não impressiono nem uma pedra de calçada. e não me mostro pra causar impressões. antes fosse inerente o desejo de ser só minha, de abrir mão das tuas mãos.

não me dói a despedida. não me causa aflição a chegada. um poço sem sensações. um vaso sem flor. em tantas camas que me deito, em tanto calor que partilho, não me resta senão as palavras, para esquecer o dito e o não dito.