sábado, 25 de abril de 2009

nunca se olhava quando estava nua. ela sentia falta não sei do que naquele corpo. era tão, mas tão comum que mal podia se aguentar. a pele desbotada trazia memórias de dias lindos que viveu mas nem se lembrava como. quando pensava naqueles dias era como a recordação de outro a lhe invadir. custava a acreditar que foram vividos por ela, mas foram e ela sabia. só não sentia algo que se aproximasse de emoção ao recordar.

estranho. ela nem notou o quanto mudou nos últimos anos. a única mudança inaceitável se deu antes do seu nascimento. deus não lhe deu um pau e ela sofre, desde o dia em que se descobriu mulher e gente, de um permanente complexo de castração.

ela não se olhava quando estava nua. porque sempre lhe faltava algo entre as pernas. algo que lhe daria direito de decidir, como os homens a hora de começar e de parar. que lhe colocaria no controle das situações. um membro bem imponente e dominador, como ela sempre imaginou que teria, caso não lhe houvessem castrado um dia.

fitou os pés largos dos passeios descalço, sentiu a água morna escorrer junto com todo o sangue que poderia perder durante cinco dias. e lhe passou pela cabeça a certeza absoluta de não ser quem era. a carne era macia, a faca que lhe rasgava era afiada. era o sangue de todas as veias que manchavam de rubro a pele branca, as paredes brancas e tingia a água. foi bonito ver, no último momento, o mundo vermelho, os olhos vermelhos pelas gotas que respingavam. já não era frio o chão.

alguém bateu na porta. estava atrasada para o colégio. café com leite e pão com margarina. venha comer antes que esfrie.