segunda-feira, 24 de agosto de 2009

ela escolheu morrer. como se escolhesse um doce numa vitrine, ou os sapatos que usaria naquele dia. por ser sempre caprichosa em suas escolhas decidiu que seria morte de parto. ela sabia e nos disse que não foi escolha espotânea, ela sonhou mais de uma vez com olhos infantis que lhe diziam: vai morrer de parto, mãezinha. e ela pensou nas diversas formas de se morrer e decidiu que se não fosse de parto não morreria nunca.

andando e arrastando os pés juntamente com todo o peso da coisa que carregava, ela sorria satisfeita com a certeza que não passaria o momento. dor. uma senhora se aproxima com olhar suplicante, voz baixa: moça, arruma dois reais pro ônibus. ela não registra: me desculpa, senhora, não tenho.

procurou onde se sentar e sentou-se não foi por não suportar a dor que a criatura inquieta e ansiosa por sair de dentro dela lhe causava, foi somente por negar-se a morrer em uma mesa fria onde lhe arrancariam a tal criatura. para ela separar-se da vida que se constituiu ali dentro já era em si uma morte. o sol que brilhava forte já não aquecia mas queimava a sua dor. os prédios ao redor se aproximavam e se afastavam, passeavam pelo azul e ela acho isso bonito, embora não pudesse imaginar como e porque se moviam.

alguém disse qualquer coisa. um rosto desconhecido, mais um ou dois rostos e algumas vozes. ela já não sabia quem era ou onde estava mas sentia que o que escorria do seu ventre por entre as pernas era vermelho e foi o que atraiu aquela confusão de imagens e sons de pessoas que se moviam ao seu redor e que não sabiam o que fazer com a menina que sangrava e sorria. tomaram-lhe nos braços quando ela já não podia mais escolher. um espetáculo à luz do dia refletido no sangue que ficou pelo chão. uma luz imensa e muito mais intensa a cegou mas ela ainda escutava todos os ruídos ao redor. não se preocupou em manter-se por mais tempo, se entregou calmamente à luz que se converteu em escuridão. ainda ouviu de algum lugar uma vozinha estridente que chorava alto quando de dentro dela se desprendeu. e tudo silenciou.