quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

o outro lado de cá

era muito cedo e, totalmente desperta como estava, saí da cama lentamente para não acordá-lo. um cuidado desnecessário, pois sabia do seu sono pesado e naquele momento estava ele totalmente entregue a morpheu. ainda assim sempre me levantava com cuidado, talvez não por ele, mas pela superioridade dos despertos sobre os indefesos dormente, que eu sempre imaginei que existisse. fazia calor, olhei-me de corpo inteiro no espelho posto verticalmente no banheiro. a pele pálida, as marcas das dobras dos lencóis e do travesseiro na cara. feia. e totalmente sem disposição de tornar aquele espelho mais feliz. saudades do mar. da constância de suas ondas, do cheiro de sal, do ardor nos olhos e do sol. quanto tempo não sentia o sol. nunca tive disposição para clubes. assim que ele terminasse o livro, voltaríamos a viver perto do mar.

ele deixava tudo meio esparramado, nunca se importou que eu lesse seus escritos e até me pedia opiniões e sugestões e ainda que não solicitasse, eu sempre as proferia sem nenhuma propriedade, mas com muita intuição. lá estavam sobre a mesa as folhas de caderno soltas, desajeitadamente arrancadas. sabia que ele trabalhava numa nova história. pensei que fossem ensaios, eram tão somente poesias. algumas palavras riscadas, reescritas, muitos, muitos versos cheios de uma doçura incógnita que combinava com ele. eu já sabia de seu apreço por poesia. ele justificava que escrever em verso o auxiliava na construção de sua prosa. eu achava tudo aquilo lindo e acreditava que ele tinha grande talento, embora alguns dos últimos editores discordassem.

o calor tem em si certo aconchego. busquei o colchonete e me instalei na varanda na companhia daqueles versos. eram delírios subjetivos, cheios de cores, de idéias soltas, vagas, mudanças repentinas de ritmo. falava de amores modernos, de fugas, de pele morena. acendi um cigarro e como que num envolvimento infantil senti ciúmes de suas palavras, imaginei mulheres, olhares, bocas vermelhas, fogo, tudo que não remetia a minha pessoa, como se devesse ser eu a única e melhor fonte de inspiração a ocupar aquela mente.

senti quando ele despertou, percebi seus movimentos e fingi não notá-lo quando veio ter comigo. sem desviar os olhos do papel pedi que me explicasse toda aquela poesia. ele, sem nenhuma ironia me respondeu: 'são seus. fiz pensando em você.'

tentei me fazer de desacreditada, mas quando encontrei os seus olhos vi que ali não haveria explicação. era só um desejo afinado de permanecer para sempre naquele momento, numa eterna contemplação entre letras, palavras, versos, canções. tudo ali entre nós. o que nos afasta. o que nos une.