quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

fragmentação

acordei e soube que já era dia alto, mais de dez da manhã, pela luz que atravessava a persiana e desenhava listras na parede. ela não estava mais no quarto, mas pela sua presença que sempre faz os lugares e as coisas vibrarem sabia que estava pela casa, embora absolutamente silenciosa. é provável que estivesse na sala e foi onde primeiro a procurei. não estava. fui ter com ela na varanda e estava estendida de bruços sobre um colchonete desses infláveis, para acampamentos forrado com lençol branco. vestia apenas a calçinha de biquini preto e fui feliz em perceber que apesar de tanto tempo distante do mar, ela conservava uma certa 'morenisse' que lhe caía muito bem e que destacava-se pela brancura do lençol. lia algumas folhas de caderno destacadas e reconheci a letra como sendo a minha, entre rabiscos, frases que escrevi e desisti, algo se constituira e ela segurava as folhas com a mão direita e com a esquerda um cigarro desses aromáticos e enjoativos que ela tanto adora. uma fivela marfim prendia caprichosamente a franja para que não caísse nos olhos e apoiada sobre os cotovelos, ao perceber minha presença, ela não desviou os olhos que percoriam a folha em zigue-zague, apenas disse, num tom meio rouco, produzido, possivelmente pela posição de seu tronco elevado e o pescoço esticado: 'não estou entendendo nada. me explica?'

achei graça do seu pedido. sempre achei que autores nunca sabem explicar suas obras, e os que o fazem possuem no mínimo um ego-inflante como um balão de gás nas mãos de uma criança gorda, e são tão certos de sua genialidade que não percebem a ridícula situação de tentar explicar o que já foi por ele dito, registrado e possivelmente publicado. bastava-lhe rasgar sua obra, deletá-la, usá-la como fogueira em noite fria, limpar a bunda quando, eliminando seus excrementos e de súbito, se visse sem o papel adequado para realizar sua higiene. enfim, bastava a tão sábia criatura que desprezasse suas idéias e palavras e as escrevesse novamente, de forma que os simples mortais, como a doce menina estendida na varanda os pudesse compreender e fizesse a ela algum sentido. de que vale a arte que não se explica por si só?

apenas sorri e respondi: 'não há o que explicar. foram feitos pensando em você. são para você.' ela sorriu e me olhou, enfim, como se desdenhasse e pensasse 'ele diz isso para todas.' o que era uma inverdade. eu só disse que eram para ela para que me mirasse como naquela hora. para que se virasse no colchão e eu pudesse ver seus seios, o desenho caprichoso da sua cintura, sua pinta na barriga, os seus joelhos ossudos dobrados e o vão entre suas pernas. esgotaria minha veia literária, escreveria o pior dos romances, um fracasso em estilo e criatividade, para que ela permanecesse naquela pose. e jamais me faria entender. ela jamais entenderia.