quarta-feira, 22 de outubro de 2008

tudo me assusta. eu queria dizer que não, que estou preparada, ou que tenho certeza que dessa vez estou no caminho mais certo. mas não dá. eu só quero que as coisas aconteçam. cansei de mastigar pedras que nunca poderei engolir.

eu me lembro exatamente do dia em que decidi: 'pra mim, chega! não dá mais'. era uma segunda-feira, ela pediu licença e entrou na sala timidamente. o menino vinha atrás. eu que já conhecia a mulher, suspirei baixo, já sabendo que teria que utilizar de todo o meu poder de argumentação para convencê-la de que toda aquela burocracia burra era muitíssimo importante e que ela deveria ficar em 'casa' e seria chamada quando a bondade 'divina' assim desejar.

não havia casa, não havia bondade. havia apenas ela ali na minha frente, e o menino brincando com qualquer coisa no canto da mesa. durante o discurso da mãe, por vários momentos me desviou a atenção o brincar do menino. era um menino muito bonito, teria entre sete ou oito anos e parecia um indiozinho de cabelos lisos e uma 'janelinha' nos dentes da frente.

despejei, não sem contrariedade, todas as coisas que eu já havia dito tantas vezes. minha vontade de sacudir aqula mulher pelos ombros e lhe dizer que ela estava sendo enganada foi tão grande que suspirei novamente. atualizei seus dados mecanicamente, como havia sido orientada a fazer. eu era ali como gado. nós tr~es, talvez. um pequeno rebanho obediente.

ela já ia despedindo-se, quando me lembrei de um pedaço de bolo que estava na minha gaveta. chamei a mulher e o menino de volta. era um bolo simples, de chocolate. estendi ao menino a pequena travessa com vários pedaços. ele a olhou, virou-se para a mãe e então para mim e perguntou: 'tia, o que é isso?' . eu não sei explicar o que aconteceu. só sei que senti um arrepio e de repente um nó na garganta, daqueles que não dá pra desatar. tinha tanta doçura e tanta sinceridade no questionamento do menino, e ao mesmo tempo me pareceu tão absurdo que uma criança de sete anos, nunca na vida tenha experimentado um bolo de chocolate, que eu chorei. diante da mulher e do filho. respondi a sua pergunta. pedi que levasse para casa a travessinha toda. e prometi que todas as vezes que ele fosse até lá eu lhe daria um pedaço de bolo de chocolate.

fui duramente repreendida. até mesmo onde achei que encontraria compreensão. e eu soube que minha hora havia chegado. eu senti muito medo. de esquecer o que é a empatia. de ver tantas coisas absurdas a ponto de um dia achar tudo comum, achar que é tudo assim mesmo. de nunca mais ter o direito de me indignar com esse mundo doido. pior, eu tinha medo e ainda tenho, de odiar meu trabalho e odiar as pessoas com as quais estabeleço essas relações. naquele dia eu soube que aquele não era o meu caminho. hoje reconheço que foi uma decisão covarde. e não tento me justificar. fui covarde e verdadeira comigo mesma.

ainda carrego comigo o peso dessa decisão e sei que eternamente me perguntarei se foi acertada ou não. ainda mais agora que um novo caminho vai se constituindo. lentamente, porque eu não tenho pressa. e não tenho medo do futuro e nem de morte precoce. minha mãe sempre me disse que ninguém morre na véspera. e eu sempre respondi que os suicídas, sim. eu e minhas respostas revoltosas.

ainda tive oportunidade de servir bolo de chocolate ao menino. poucas vezes. mas sempre que me lembro desse dia, imagino o menino experimentando todos os bolos do mundo. morando numa casinha de doces, como a da bruxa, na história de joão e maria. a casa que todas as crianças deveriam ter.